8 de dez. de 2014

Educando sem Rótulos


 
"Esse menino vive no mundo da lua."
"Essa menina não come nada."
"Ele têm o gênio do avô!"
"Na nossa família ninguém é muito bom em matemática."


Quantas vezes, sem pensar, você já disse frases como essas, diretamente ao seu filho ou conversando com alguém a respeito dele? E quantas delas o influenciaram de fato, colando-se a ele como uma segunda pele, que por momentos fica difícil de tirar? "A gente não se percebe sozinho, não constrói a nossa identidade sozinho. É no relacionamento e no embate com o outro que cada um vai formando uma ideia de si mesmo", diz a psicóloga Adriana Haasz de Moura Gaunszer, do Núcleo Criação, em São Paulo. Justamente por isso, é importante prestar muita atenção nas frases que falamos ou nos "carimbos" que - por vezes sem querer ou sem muita consciência -, vamos atribuindo ao outro.

"Quando a gente rotula uma criança, termina olhando para ela sob esse prisma. Isso, de alguma maneira, lhe rouba a possibilidade de ser diferente, de ser visto pelos outros de modo diferente", diz Adriana. Qual o pai que nunca se surpreendeu ao buscar o seu filho na casa de um colega, em outro ambiente e com outra família, e perceber ou ouvir que ele teve um comportamento totalmente oposto ao que costuma mostrar em casa? Talvez isso ocorra justamente porque, nesse outro lugar, com pessoas que ainda não fizeram um julgamento a seu respeito, ele tenha a possibilidade de experimentar outro comportamento.

"Saber quem você é também traz um conforto. Pode ser angustiante estar na dúvida ou perceber-se em transformação. Por isso, muitas vezes, aceitamos de bom grado os rótulos que vão nos dando", diz a terapeuta ocupacional Lara de Paula Eduardo. "Às vezes é mais fácil ser algo, mesmo que não muito agradável, do que não saber quem se é." Nesse sentido, as crianças, ao ouvirem coisas sobre si mesmas, vão reforçando aqueles comportamentos e cristalizando assim modos de agir que nem sempre lhes fazem bem. "A criança quer agradar. Se sua mãe, sua família esperam determinado comportamento, ela tende a corresponder à expectativa", diz a fonoaudióloga Luana Magalhães, que atende crianças e famílias junto com Adriana e Lara no Núcleo Criação, em São Paulo. Uma menina sempre vista como boazinha ou comportada, por exemplo, acaba não se permitindo expressar raiva ou se sente culpada quando esse sentimento aflora. Ou, ao contrário, uma criança que explode facilmente e os pais a rotulam como birrenta ou encrenqueira termina por sentir que é sempre inadequada. "Isso vai afetando a autoestima e a imagem de cada um", diz Luana.

Para os pais, familiares ou professores muitas vezes também é mais fácil rotular e agir segundo esse rótulo do que manter-se atento, aberto, tentando perceber o tempo todo como a criança se manifesta e por que. Educar alguém é mesmo muito desafiante. Quantas vezes, quando sentimos que finalmente pegamos o jeito de lidar com alguma questão, o filho ou aluno, tal qual videogame, simplesmente muda de fase e nos obriga a recomeçar todo o processo? Mas já pensou o quanto seria tedioso decretar que tudo é imóvel, fixo, não passível de influência?

Em 1990, o psicólogo Claude Steele, da Universidade de Standford, fez uma série de experiências e comprovou que é possível afetar a performance de uma pessoa em um teste, seja de capacidade física ou seja de intelectual, apenas dando a ela uma indicação psicológica sutil sobre a identidade do grupo a que essa pessoa pertence. Em outras palavras: é possível abalar a confiança de alguém apenas reforçando um rótulo ou um preconceito estabelecido.

Uma de suas pesquisas foi aplicada a um grupo de idosos que realizaria um teste de memória. Metade deles, antes de fazer o teste, recebeu para ler um artigo que tratava sobre a perda gradual da memória com a idade. A outra metade, apenas fez o teste. O primeiro grupo, influenciado pelo artigo, teve um aproveitamento de 44%, enquanto o segundo grupo pontuou em 58% das respostas. O mesmo aconteceu com meninas que iriam realizar uma prova de matemática. Metade delas ouviu antes de entrar para fazer o teste que "meninas vão pior em matemática". Isso de fato abalou a confiança delas a ponto de fazê-las pontuar menos que o grupo de controle. Steele chegou então à conclusão de que, quando alguém teme confirmar um rótulo ou um estereótipo sobre o grupo ou gênero a que pertence, a ansiedade gerada acaba afetando-o de fato, numa espécie de profecia auto-realizada.

A boa notícia é que essa armadilha, bem como o mal que trazem certos estereótipos e rótulos, também pode ser desarmada, na medida em que se diga e se mostre que tanto a inteligência quanto o caráter são maleáveis e que a nós todos, felizmente, é dada a possibilidade de mudar, avançar e melhorar.
Afinal de contas, ninguém é 100% bom ou ruim. E estabelecer rótulos, nos quais não cabem nuances, é condenar o outro a uma camisa de força sofrida de rasgar. O filósofo grego Heráclito resumiu com simplicidade a nossa complexa e mutante condição ao dizer que "ninguém se banha duas vezes no mesmo rio". Porque o rio não será o mesmo, a pessoa não será a mesma. E essa constante transformação ocorre justamente porque o ambiente, os outros e nossas próprias percepções nos desafiam, nos influenciam, nos fazem mudar e caminhar. Ainda bem!

Confira, a seguir, algumas dicas para manter o olhar e a percepção atentos, evitando o truque fácil de distribuir rótulos - e com eles sofrimento - ao seu redor.


Ninguém é igual o tempo todo, certo? Temos momentos de maior entusiasmo ou menor, de mais irritação ou raiva, de mais paciência. "Uma coisa é dizer a uma criança: ‘isso que você fez foi maldoso, deixou seu amigo chateado’, e lhe mostrar a consequência do seu ato. E outra muito diferente é, diante de uma atitude que você desaprova, disparar: ‘você é um menino mau!", aponta Lara. Fazer da pessoa e de uma eventual atitude uma coisa só é meio caminho andado na direção do rótulo. Claro que tomar esse cuidado é mais trabalhoso e exige percepção, mas diferenciar a pessoa de sua atitude vai mostrar à criança que há espaço para mudar, para entender o que fez e poder agir diferente uma outra vez.


Muitas vezes, quando a criança faz algo que desagrada aos pais ou tem determinada atitude, a família atribui a isso tanta importância que acaba ampliando o efeito de algo que seria passageiro. Seu filho não come o tanto que você considera adequado, está ansioso ou mais agressivo? Pergunte-se por que aquilo está afetando tanto você. Com essa resposta, talvez seja mais fácil, em vez de se apegar a esse comportamento, questioná-lo e apontá-lo o tempo inteiro para a criança, simplesmente reconhecê-lo, acolhê-lo e deixa-lo passar. Tenha em conta que, muitas vezes, as crianças estão apenas experimentando, algo que dura um tempo, mas são capazes de se mover desse lugar se aquilo não virar uma definição de si mesma.


Apontar uma característica ou uma forma de agir é diferente de rotular. Perceber a individualidade de alguém e valorizar esse traço é reconhecer a pessoa. O perigo está em fazer disso algo estático, transformando o que era único e pessoal em algo do qual a pessoa não consegue mais se desvencilhar. É preciso reconhecer e valorizar os pontos fortes de cada um, mas deixar aberta a possibilidade de mudança. E, sobretudo, é importante propiciar às crianças um espaço para experimentar, para poder ser diferente. Quando estampamos sobre elas um rótulo, essa mobilidade fica dificultada - e a mudança desejada, também.


"Qualquer característica, quando levada ao extremo, pode ser prejudicial. Uma coisa é ter liderança e outra, ser autoritário ou mandão", diz Lara. Vale brincar com esse conceito com as crianças, pensar, por exemplo, nos traços de cada um na família e no que acontece com essa condição quando ela se exacerba. A ideia por trás do jogo é perceber e questionar mais - e rotular menos. Também é importante fazer a criança notar quando ela consegue agir de outro modo, se comportar diferente. Afinal de contas, ninguém é apenas uma coisa ou sempre igual. E o rótulo promove justamente isso: toma a parte pelo todo, é uma simplificação.


Tente propiciar ao seu filho o convívio com crianças de grupos diferentes, de diferentes idades, de outras classes sociais, de outros gêneros. Só assim será possível mostrar que existem, sim, diferenças, mas que elas não nos impossibilitam de conviver, nem merecem ganhar nomes ou ser alvo de gozações. Em geral, as crianças menores lidam melhor com as diferenças, entendem que podem aprender com elas. Outro bom exercício é tentar encontrar denominadores comuns entre todos, apesar das diferenças: o que cada um sabe? O que pode ensinar? Promover trocas de saberes ou trocas de lugares ajuda as crianças a perceberem os mecanismos do reconhecimento e do rótulo.


Um estereótipo vai se fixando na medida em que ele é repetido e reforçado: "os negros são melhores atletas"; "meninas não curtem as áreas de exatas". É preciso desconstruir essas noções petrificadas. Uma forma de fazer isso é mostrar diferentes exemplos, questionar: por que meninas não podem brincar de construir? Quem falou? Por que meninos não podem colocar brinco? E que tal mostrar uma personalidade de destaque na área de física, como Marie Curie, por exemplo, e pedir às meninas que façam suas experiências? Ou por que não citar um excelente boxeador ou jogador de basquete branco e mostrar o bem que ele se move, o quanto é ágil? "Assim as crianças entendem que se pode mudar, experimentar, corrigir rotas", diz Lara.


É interessante contar ao seu filho que todos queremos pertencer, ter um grupo que nos contenha e ampare, que todos buscamos, de algum modo, aprovação. E, por isso, é normal fazer esforços para ser aceito ou entrar em determinada "panela". O que não é razoável é mentir, passar por cima de si mesmo ou se violentar de algum modo nesse caminho. Isso acaba por tornar todos tão homogêneos a ponto de perder a expressão da individualidade. E quando isso acontece, o esforço não vale a pena, trata-se de algo que está cerceando, censurando, que ultrapassou o limite do saudável.
 

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