Desde
a década de 1970, o conceito de resiliência vem se modificando nas áreas da
psicologia. “Já foi entendido como sinônimo de invulnerabilidade, como
capacidade individual de adaptação bem-sucedida em um ambiente ‘desajustado’ e
como qualidades elásticas e flexíveis do ser humano” (p. 18). Segundo os mesmos
autores, as pesquisas
buscavam
compreender se a capacidade de resiliência era fruto da constituição individual
ou fruto da interação entre o subjetivo e o meio. Essas pesquisas parecem ter
dado origem à compreensão da resiliência como uma capacidade de sucesso pessoal
diante de um meio social desajustado.
Assim,
seriam resilientes pessoas criadas em um ambiente desfavorável que não
apresentassem comportamentos indesejados. O risco inerente a essa visão é que resiliência
pode ser entendida de forma ideológica, transformando-se em um atributo que se
teria ou não, o que poderia levar à rotulação de pessoas de grupos mais vulneráveis
como não resilientes, dando espaço a considerações simplistas.
Hoje,
a resiliência é compreendida não como um atributo estável do indivíduo, mas sim
como um processo dinâmico, colocado em marcha após o evento traumático, indo
além da superação da adversidade19.
Ela opera na presença do risco, não para evitá-lo ou eliminá-lo, mas sim para
produzir características saudáveis (Barbosa apud Araújo, p. 19). Em outras
palavras, está “ancorada em dois grandes polos: o da adversidade, representado
pelos eventos desfavoráveis, e o da proteção, voltado para a compreensão de fatores
internos e externos ao indivíduo, mas que o levam necessariamente a uma
reconstrução singular
diante do sofrimento causado por uma adversidade” (p. 19).
Ser
resiliente não significa ser invulnerável, mas ter uma capacidade de, diante de
uma situação estressante, reconhecer o perigo e sentir-se por ele atingido.
Embora marcada pela experiência, a pessoa demonstra capacidade de se recuperar e
prosseguir. Ou seja, embora o ambiente apresente riscos, apresenta também
fatores que podem proteger a pessoa, possibilitando a construção da resiliência.
Silva,
et al (p. 151) listam os
fatores de proteção apontados por Cyrulnik, os quais atuam de forma
complementar: “temperamento da criança, flexível, confiante e capaz de buscar ajuda
exterior; o contexto afetivo no interior do qual a criança vive seus primeiros
anos; um clima familiar que aporte a segurança necessária para que desenvolva a
confiança em si mesma e nos outros”. Outros fatores de proteção incluem: os cuidados
responsáveis e constantes dirigidos à criança; as expectativas positivas nela
depositadas; as relações de apego seguro; a coesão entre os membros da família,
a existência de pelo menos um adulto verdadeiramente interessado na criança,
capaz de bem cuidá-la e protegê-la, mesmo na ausência de responsabilidade dos pais,
assim como a sensibilidade materna que, juntamente com o suporte social são,
segundo Silva20, capazes de
reduzir substancialmente os problemas emocionais e comportamentais,
principalmente para crianças que crescem em ambientes com maiores desvantagens.
Pinheiro
cita Masten e Garmezi, que identificaram três classes de
fatores de proteção: atributos da criança (dentre os quais citam atividade, autonomia,
orientação social positiva, autoestima e similares); atributos da família
(coesão, ausência de conflitos, presença de um adulto interessado); e “disponibilidade
de uma rede de apoio social bem-definida e com recursos individuais e institucionais
igualmente bem-definidos”.
Pesquisas
recentes apontam novas diretrizes para o estudo da resiliência, instigando um amplo
campo de discussão, a saber, a importância da interpretação dada pelo indivíduo
acerca das adversidades, como mais significativa que os fatores de risco
propriamente ditos. Dessa forma, a reflexão e a interpretação dos fatos
tornam-se características fundamentais nas pessoas resilientes: por um lado, a
questão do individual e do singular acentua-se, pois as pessoas podem responder
de maneiras diferentes diante de adversidades semelhantes (uma mesma situação
de vida pode ser interpretada por alguns como perigo e para outros como
desafio); porém, ao mesmo tempo faz-se necessário considerar que a resiliência
não depende apenas de traços e disposições pessoais e individuais. É necessário
discutir a resiliência nas famílias, nas instituições, nos grupos...
(...)
Do
texto de Taralli, é possível depreender que “a intervenção diagnóstica,
preventiva e psicoterápica, além de esforços interdisciplinares conjugados, por
toda a comunidade escolar”, podem contribuir para a mudança do ciclo de dor e
violência. Ou seja, psicoterapeutas têm muito a contribuir nesse processo de
superação por meio da reconstrução ou fortalecimento da resiliência, ao
oferecer novas possibilidades de ressignificação de vínculos e de renovação dos
sentidos da autoestima e da autoeficácia.
Essa
contribuição pode ocorrer de diferentes formas: pelo trabalho psicoterapêutico
individual e grupal com alunos (“vítimas”, “vitimizadores” e “observadores”),
pela orientação a famílias e docentes, pela produção de novos materiais, pela participação
em grupos transdisciplinares e de muitas outras formas, dependendo da
experiência e da criatividade de todos os envolvidos.
Lidar
com o bullying não
significa expor “vítimas”, “vitimizadores” ou “observadores” a situações vexatórias.
Significa romper o ciclo de violência, contribuindo para o desenvolvimento de uma
autoestima baseada nos valores da equidade e na aceitação da alteridade. E
também reconhecer que é possível superar o sofrimento psíquico, sem revide e na
perspectiva da ação pelos direitos de cidadania, com o fortalecimento de uma atitude
de autoaceitação, de autoconfiança, de autoestima, em suma, de resiliência.
Assim se torna possível educar cidadãos resilientes, que possam lutar contra as
adversidades de forma criativa, buscando soluções que vão além do simples aprender
a revidar e a manter o círculo vicioso da violência de qualquer tipo.
Pode
ser um trabalho lento, que pareça pequeno em relação à magnitude do problema do
bullying escolar,
mas, com certeza, é muito melhor viver em um mundo repleto de borboletas do que
de tristes lagartas encerradas em casulos que se tornaram prisões.
ATENÇÃO: Este texto é parte integrante do artigo “Resiliência
e Bullying: a possibilidade da
metamorfose diante da violência”, publicado em “O Mundo da Saúde”, São Paulo, 2012;
36(2), páginas 311 a 317.
A autoria é de Vera Lucia Vaccari, Psicóloga, Mestre em Saúde Pública, Supervisora clínica e Docente do Curso de Psicologia do Centro Universitário São Camilo.
Você pode
conferir as referências e o material na íntegra no endereço: http://www.saocamilo-sp.br/pdf/mundo_saude/93/art06.pdf