3 de nov. de 2013

Violência Doméstica


Na década de 60, o Brasil viveu uma epidemia de poliomielite. Hoje, milhares de adultos ainda sofrem as seqüelas desta terrível doença. Para erradicá-la, primeiro foi preciso descobrir uma vacina. Depois, foi necessário um esforço nacional de conscientização, tendo em vista o receio do nosso povo em vacinar suas crianças. E, finalmente, precisou haver uma mobilização de toda a sociedade civil, de todos nós, tanto nas campanhas como no tratamento daqueles que já haviam sido acometidos pela doença e cujas vidas estariam alteradas para sempre.

Trinta anos se passaram. Agora enfrentamos uma nova epidemia: a violência doméstica, que já pode ser encarada como uma doença social. Ela é mais complexa em suas raízes (nunca vamos conseguir isolar o vírus da violência), mais presente em nossas vidas e mais devastadora em suas seqüelas. É imprescindível que toda a sociedade se engaje em uma campanha permanente de combate a este mal, que faz dos mais frágeis suas maiores vítimas.

Desde maio deste ano, a psicóloga Mary Cristina Thomaz Gomes vem coordenando a Campanha de Combate à Violência Doméstica e Exploração Sexual contra Crianças e Adolescentes no Estado de Minas Gerais. Essa campanha está sendo realizada pela Visão Mundial do Brasil em parceria com outras organizações governamentais. Prevendo a demanda de material informativo e de capacitação como resultado da campanha, Mary Cristina e Maria Tereza N. M. Fonseca elaboraram uma cartilha, que posteriormente foi publicada pelo Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente de Belo Horizonte.

As informações aqui reunidas provêm de conversas com a psicóloga Mary Cristina. O assunto não está esgotado. Aqui estão pinceladas apenas algumas considerações básicas sobre a violência doméstica da perspectiva de um profissional engajado no combate ao que poderíamos chamar de uma situação endêmica.

O combate é importante e é uma estratégia fundamental. Contudo, a prevenção, assim como no caso da poliomielite, continua sendo a medida mais promissora. Como cidadãos e profissionais engajados na luta em favor da criança e do adolescente em risco, devemos observar algumas diretrizes básicas com relação à nossa conduta.

Diagnóstico
Temos o dever de nos informar sobre o que constitui a violência contra a criança. Não precisamos ter certeza; uma desconfiança é o suficiente para nos levar a pesquisar.
Mary Cristina afirma que a criança é um “sujeito de direito e isso significa que ela é considerada um ser humano igual aos outros (adultos); ela tem o direito de ter uma opinião, tem o direito de se expressar; ela não é um objeto para ser manipulado pelos pais ou responsáveis”. A violência doméstica afeta toda a família, mas a criança é quem mais sofre, por ser o elo mais frágil.

Busca de tratamento
A nossa sociedade nos ensina a respeitar limites, o que é muito bom. Mas há alguns limites que precisam ser quebrados quando a urgência é maior. Não é errado discar 192 pedindo socorro para o nosso vizinho que está demonstrando sintomas de um ataque cardíaco, mesmo que ele teime que não tem nada. Da mesma maneira, a denúncia é uma chamada de emergência em busca de tratamento para uma família que já não consegue encontrar a ajuda de que precisa. Se não tomarmos a iniciativa, a situação familiar pode piorar e o resultado muitas vezes chega à morte!

Mary Cristina entende que “às vezes os familiares estão angustiados e querem denunciar uma pessoa, mas têm medo”. Ela lembra que o estatuto prevê situações assim: “Mesmo diante de apenas uma suspeita, você deve denunciar”, porque é melhor descobrir que não estava acontecendo nada e dar graças a Deus do que deixar passar, fazer vista grossa”. O estatuto prevê ainda uma responsabilidade dobrada para os que estão trabalhando em contato direto com a criança. Cabe aqui uma pergunta: a sua organização tem promovido a capacitação de seus profissionais nesta área?

Se a denúncia for aquela primeira chamada pedindo socorro, o “posto de saúde” é o Conselho Tutelar. Ele é a sua primeira parada em busca de proteção a uma criança e tratamento para a família. Pela nova legislação, os conselhos são obrigados a manter sigilo sobre quem moveu a denúncia e sobre todo o processo de investigação para averiguar se a situação da criança é segura. Se a pessoa denunciada não for culpada, ela não será punida.

Cobrança do tratamento
Qualquer cidadão brasileiro cuja renda não permite pagar um plano de saúde sabe que, para conseguir cuidados médicos, é preciso muita insistência. O mesmo acontece com os conselhos tutelares. As estruturas legais já foram criadas. Cada um de nós precisa tomar consciência disso e começar a cobrar e a insistir para que cada município tenha o seu pessoal capacitado, devidamente remunerado e munido do que for preciso para uma ação eficaz de proteção à crianças e ao adolescente.

Você pode estar se perguntando: “Mas o que fazer onde não existe um Conselho Tutelar?” Nessa circunstância, procure uma autoridade reconhecida: um juiz, um pastor, alguém que inspire o respeito da comunidade — faça alguma coisa! Mary Cristina explica que “o agressor reina soberano em sua casa, mas quando é checado pela sociedade... bem, ele não quer ser tratado como trata os seus!”

Seqüelas
O resultado a longo prazo dos maus tratos à criança dentro de casa é que elas tomam o caminho da rua. Então o que era assunto de família se torna caso de segurança pública, afetando a todos nós.

O ser humano é um ser social. Ele aprende a ser parecido com o adulto que o criou. Se o ambiente em que ele vive é violento, as chances de ele mesmo vir a ser uma pessoa violenta são maiores do que para aqueles que tiveram uma infância tranqüila.

E aqui cabe mais um alerta da psicóloga: Um tapa hoje pode vir a ser um espancamento amanhã”. As famílias brasileiras precisam reelaborar seus conceitos de disciplina de forma a prevenir situações explosivas. Esta tarefa cabe a todos nós. Todos estamos sujeitos a fazer uso da violência contra o mais fraco em situações de estresse.

Mas há outras conseqüências, como morte, deformidades físicas, inanição, traumatismo craniano, gravidez incestuosa, além das deformações psicológicas. Mensagens como “Você nunca deveria ter nascido”, “Você é um estorvo”, “Você não presta” têm efeitos duradouros e devastadores, podendo levar até mesmo ao suicídio.

Espera pelo melhor
É necessário identificar as causas da violência — uso de drogas (inclusive o álcool) ou até mesmo uma doença mental — e encaminhar o agressor para um tratamento adequado como uma condição para ele se reunir novamente à família. Mary Cristina afirma que “muitas vezes a família está precisando de ajuda, inclusive de profissionais da área de saúde mental”.

Se o agressor não for tratado e simplesmente tirarmos a criança de perto dele, além de estarmos vitimando ainda mais a criança (é ela quem vai enfrentar a perda de laços familiares), estaremos permitindo que o agressor eleja outro membro da família para agredir. “Temos grande preocupação com um tratamento para o agressor, porque muitas vezes ele está reproduzindo o que aconteceu com ele”, afirma Mary Cristina.

É importante separar a vítima do agressor, mas apenas temporariamente. Mais importante ainda é prescrever um tratamento para todos, de forma que a família seja fortalecida e possa voltar a viver uma vida sadia. O Conselho Tutelar tem o papel de organizar esse tratamento e encaminhar a família para que ela seja ajudada. Mary Cristina conta o caso de um senhor, diácono na igreja, que foi denunciado pela própria esposa como molestador de suas filhas adolescentes. Ele foi encaminhado para tratamento com uma psicóloga. Sua esposa, com sintomas psicóticos, foi tratada por um psiquiatra e as filhas foram ajudadas por uma assistente social. Assim, a família conseguiu superar os problemas e se restabelecer.

Por uma família feliz
Nenhum membro de uma família que esteja enfrentando a violência se sente feliz — nem mesmo o agressor. O mal tem de ser combatido por todos os lados, inclusive pelo lado espiritual. Esperamos que daqui a mais trinta anos possamos colher os frutos do nosso esforço contra a violência doméstica e que muitos adultos de então, hoje crianças, tenham sido poupados das seqüelas de uma infância triste e opressora.

Mary Cristina Thomaz Gomes, psicóloga e psicanalista, é especialista em violência doméstica contra crianças e adolescentes.

FONTE:  http://www.biblioteca.maosdadas.org/?pg=show_artigos&area=revista&artigo=8&sec=5&num_edicao=0&util=1

Nenhum comentário:

Postar um comentário